O Brasil está nas mãos de um mandatário literalmente fora de controle emocional. Nos últimos dias, a população acompanhou apreensiva e boquiaberta uma sucessão de manifestações do presidente que revelam inabilidade para lidar com as instituições, despreparo para confrontar notícias negativas e, no final, degeneraram em uma situação descontrolada.
A sequência de destemperos começou na segunda-feira 28 com um vídeo em que o presidente era retratado como um leão acossado por hienas. Foi postado no perfil oficial de Bolsonaro em uma rede social. Na montagem, o rei da floresta enfrenta partidos políticos (os óbvios PT, PSDB, PDT, mas também o PSL, legenda do próprio presidente), o Supremo Tribunal Federal (STF), a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e veículos de imprensa. Outro leão, descrito como “conservador patriota”, espanta os carnívoros. Os felinos se cumprimentam, e surge a imagem de Bolsonaro, uma bandeira do Brasil e a voz do presidente repetindo seu slogan: “Brasil acima de tudo. Deus acima de todos.”
Ataque a outro poder
A fábula infantil, cafona e por si só constrangedora, não está à altura da comunicação que se espera de um estadista. Pior é a mensagem que transmite: a de um representante do Executivo que ataca outro Poder, além de se projetar como um rei acuado em uma selva — uma óbvia distorção institucional, de quem não tem maturidade para entender o jogo democrático e encara instituições representativas da sociedade como obstáculos. Talvez por isso o próprio presidente tenha se retratado no dia seguinte. Bolsonaro, que estava em viagem oficial na Arábia Saudita, anunciou que o vídeo era um “erro” e que “se desculpava publicamente ao STF”.
A peça foi excluída das redes sociais. Há uma dúvida sobre a sua autoria, o que expõe mais uma questão delicada. O filho Carlos Bolsonaro, suspeito de ter feito a postagem, anunciou que o próprio presidente tinha sido o autor. Em contraste com as excusas presidenciais, o assessor especial da Presidência, Felipe Martins, que tem gabinete no Palácio do Planalto, defendeu o filmete. “O establishment não gosta de se ver retratado, mas ele é o que ele é: um punhado de hienas que ataca qualquer um que ameace o esquema de poder que lhe garanta benefícios e privilégios às custas do povo brasileiro. Isso só mudará quando o Brasil se tornar uma nação de leões”, escreveu nas redes sociais. A contemporização partiu do vice-presidente, Hamilton Mourão: “O importante é que o presidente teve humildade para admitir seu erro. Ele já pediu desculpas, muito claramente ele já se desculpou, porque quando ele viu o conteúdo do vídeo, retirou. Acho que vira a página”. Porém, nada muda o fato óbvio. Jamais deveria ter sido permitido, como tem sido frequente, o acesso do canal oficial do mandatário para divulgar peças toscas, panfletárias e enviesadas.
O episódio do destempero de Bolsonaro é ainda mais grave considerando-se que o presidencialismo brasileiro concentra no chefe do Executivo um poder particularmente grande. O comportamento errático assusta, desgasta e desorienta a sociedade, que lhe concedeu o mandato e tem uma alta expectativa para a resolução dos graves problemas nacionais. O histrionismo tira o foco da pauta urgente de medidas que o País aguarda. O ataque generalizado irritou especialmente os ministros do STF. O decano do tribunal, Celso de Mello, em nota, disse que “o atrevimento presidencial parece não encontrar limites” e que Bolsonaro não é um “monarca presidencial”. Afirmou o ministro: “Esse comportamento revelado no vídeo em questão, além de caracterizar absoluta falta de ‘gravitas’ e de apropriada estatura presidencial, também constitui a expressão odiosa (e profundamente lamentável) de quem desconhece o dogma da separação de poderes e, o que é mais grave, de quem teme um Poder Judiciário independente e consciente de que ninguém, nem mesmo o Presidente da República, está acima da autoridade da Constituição e das leis da República.”
Contra as instituições
O vídeo confronta todos: além dos citados acima, mira o MBL (que apoiou decisivamente a eleição de Bolsonaro), “isentão” (mostrando que quem não é amigo, é inimigo), feminismo, ONU, CUT e até a Lei Rouanet. É uma boa parábola para o isolamento crescente do mandatário, que desrespeita instituições, destrói antigos aliados e enxerga inimigos por todos os lados. Nova demonstração cabal dessa sensação de isolamento foi dada no mesmo dia em que se retratava, às 21h em Brasília — 3h50 da madrugada em Riad. Em um acesso de fúria, Bolsonaro divulgou um vídeo de 23 minutos com semblante transtornado e discurso caótico. Reagia à revelação feita pela Rede Globo de que um porteiro de seu condomínio o vinculara aos assassinos de Marielle Franco (leia na página 28). Aos gritos, acusou a TV Globo de “patifaria” e “canalhice”. Desde a redemocratização, nunca um veículo de imprensa tinha sido alvo de tamanha cólera presidencial. Bolsonaro disse que a rede “infernizava sua vida”, e que não tinha motivo para “matar quem quer que seja no Rio de Janeiro”. Criticou o governador carioca, Wilson Witzel, e disse que a intenção é destruí-lo. São declarações incomuns para alguém na sua posição institucional, e num tom dissonante.
Desregrado
É natural que qualquer um reaja com indignação a uma acusação tão grave. E o presidente teve nas horas seguintes o apoio, entre outros, do procurador-geral da República, Augusto Aras. “O que existe agora é um problema novo, o factoide que gerou um crime contra o presidente”, disse à Folha. O vice-presidente, Hamilton Mourão, declarou em relação ao episódio que “ =não dá para derrubar o governo dessa forma, mas que perturba o bom andamento do serviço, como se diz na linguagem militar, perturba”. Mais tarde, Mourão afirmou que o presidente é alvo de “um dos mais vis ataques à sua pessoa, vindo de quem nunca defendeu a verdade, a honestidade e o interesse nacional”. Para ele, além da imprensa, “tem mais gente atacando o presidente”.
Mas o comportamento desregrado de Bolsonaro revelou novamente a incapacidade de o presidente em lidar com o contraditório. Além disso, voltou a tratar qualquer um que não participe de seu círculo íntimo ou de suas hostes como adversário. Em termos psiquiátricos, a atitude poderia ser definida como delírio persecutório. Coloca-se como vítima de uma ameaça permanente, cercado de vilões, movido por fantasias conspiratórias. Como notou até o jornal britânico Financial Times, referência obrigatória para empresários e investidores, o episódio “levanta questões sobre o estado mental de Bolsonaro”. Para a publicação, as “frequentes explosões de Bolsonaro” estão afastando apoios necessários para aprovar a agenda de reformas.
A conduta certamente está aquém da exigida para alguém na sua posição. A liturgia do cargo foi olimpicamente desrespeitada por Bolsonaro em outros incidentes excêntricos, como aconteceu ao criticar a vitória eleitoral do futuro presidente argentino, Alberto Fernández. Além dessa impostura, negou-se a cumprimentá-lo. Tratou uma questão de Estado como pessoal, revelando constrangedora miopia estratégica e diplomática. Em termos políticos, o presidente revelou nesses episódios novamente uma preocupante tendência autoritária. Ao asfixiar a imprensa, como fez na tentativa recente de eliminar a publicidade legal, ou ao ameaçar a TV Globo de não ter sua concessão renovada em 2022, como ocorreu no vídeo em questão, Bolsonaro se projeta como um “Chávez de direita”. Não é só. Também se comporta como déspota com outras atitudes imperiais — por exemplo, ao tratar as verbas públicas como sua seara própria ou ao tentar direcionar a produção artística em todo o País.
Alinhados com o STF, todos os setores reagem, a começar pelas Forças Armadas. Os vídeos alarmaram oficiais de alta patente da ativa, refratários a uma escalada autoritária e receosos do discurso bolsonarista de que uma ameaça esquerdista estaria por trás de eventos tão díspares como as manifestações no Chile e desastres ambientais no Brasil. O receio tem fundamento. Bolsonaro já afirmou que teme o contágio das manifestações de rua no Brasil. Tamanho retrocesso alarma a todos. A escalada ganhou ares de crise institucional com a reação do filho do presidente, Eduardo Bolsonaro. Ele foi explícito. Em entrevista à jornalista Leda Nagle, disse que o pai está sendo responsabilizado por “tudo”. Afirmou: “Se a esquerda radicalizar a esse ponto, a gente vai precisar ter uma resposta. E uma resposta pode ser via um novo AI-5, pode ser via uma legislação aprovada através de um plebiscito ocorreu na Itália. Alguma resposta vai ter que ser dada”. O presidente da Câmara reagiu com indignação: “Manifestações como a de Eduardo são repugnantes, do ponto de vista democrático, e têm de ser repelidas com toda a indignação possível pelas instituições brasileiras. A apologia reiterada a instrumentos da ditadura é passível de punição pelas ferramentas que detêm as instituições democráticas brasileiras. Ninguém está imune a isso. O Brasil jamais regressará aos anos de chumbo”.
Uma afronta à constituição
O ministro Marco Aurélio Mello, do STF, afirmou: “Tempos mais do que estranhos quando há essa tentativa de esgarçamento da democracia. Ventos que querem levar ares democráticos”. Davi Alcolumbre, presidente do Senado, disse que “é um absurdo ver um agente político, fruto do sistema democrático, fazer qualquer tipo de incitação antidemocrática. E é inadmissível essa afronta à Constituição. Não há espaço para que se fale em retrocesso autoritário”. Bruno Araújo, presidente do PSDB, disse que o partido vai representar no Conselho de Ética. “Ao propor o AI-5, ele está propondo fechar o Congresso Nacional. Então a segunda coisa é entrar no STF por quebra de ordem constitucional”, disse. Partidos de esquerda também decidiram ir ao Conselho de Ética da Câmara pedir a cassação do mandato do filho do presidente. A representação será feita pelo PSOL, PT, PCdoB e PSB.
“Esses vídeos tiram foco do que é principal, geram conflitos entre os Poderes e com os partidos. Nos colocam numa agenda secundária, desnecessária. Tem de tomar cuidado para que um vídeo desse, que é desnecessário, não gere mais desunião”, disse Rodrigo Maia.”É hora de o presidente acabar com essa postura de raiva e represália, que ameaça envenenar o tecido social brasileiro”, reagiu o presidente da OAB, Felipe Santa Cruz. “Para Bolsonaro, a única imprensa que serve é a que se alinha incondicionalmente com os absurdos que ele diz ou que esse governo comete”, disse o vice-presidente da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), Cid Benjamin.
Ao isolar-se de forma surpreendente, em apenas dez meses de gestão, ao atacar a imprensa e instituições democráticas e renegar seus próprios ex-aliados, afastando as forças que ainda o sustentam, Bolsonaro avança rapidamente para minar sua presidência. Se ele se considera um leão, está apenas dando as costas à floresta. Corre o risco de ficar sozinho e acabar devorado.
Um vídeo em que o presidente era retratado como um leão acossado por hienas foi postado no perfil oficial de Bolsonaro na segunda-feira 28. Na montagem, o rei da floresta enfrenta partidos políticos (PT, PSDB, PDT e PSL), o STF, a CNBB, a OAB, o MBL, o feminismo, a ONU, a CUT e até a Lei Rouanet. No final, outro leão, descrito como “conservador patriota”, espanta os carnívoros. Os felinos se cumprimentam, e surge a imagem de Bolsonaro, uma bandeira do Brasil e a voz do presidente repetindo seu slogan: “Brasil acima de tudo. Deus acima de todos.”