O Pix, que vai entrar em operação no próximo dia 16, não é apenas uma mudança no sistema de pagamentos e transferência de dinheiro. Vai mudar as relações comerciais entre consumidores e empresas. Com ele, será possível enviar e receber dinheiro 24 horas por dia, sete dias de semana, de forma gratuita. Redes de varejo, fintechs e outras instituições poderão fornecer carteiras digitais e concentrar a vida financeira do cidadão, em pé de igualdade com os bancos tradicionais. A novidade trará mais competição e poderá dar cidadania bancária a 45 milhões de brasileiros que hoje não têm contas bancárias. Empresas terão custos reduzidos e o empreendedorismo pode ser estimulado. Mas essa importante modernização exige cuidados, educação digital e adaptação
Em aproximadamente duas semanas, com a entrada em operação do Pix, consumidores e empresas vão experimentar uma reviravolta no seu dia a dia. Não se trata apenas de uma mudança de tecnologia. O novo sistema do Banco Central (BC) é uma revolução das relações comerciais entre consumidores e empresas que vai mudar a relação das pessoas com o sistema financeiro. O serviço entra em vigor no dia 16 de novembro. Os pagamentos vão ficar mais baratos e rápidos para o consumidor, que não dependerá mais de dinheiro, cartão de crédito ou débito. Por meio de um celular, poderá pagar suas compras no comércio, inclusive de ambulantes.
O novo sistema pode incorporar 45 milhões de brasileiros que não possuem conta em banco — os desbancarizados. Atualmente, para receber ou enviar dinheiro via TEDs ou DOCs, é necessário ter uma conta bancária. Com as chaves do Pix, será possível enviar ou receber dinheiro usando uma carteira digital, aplicativos gratuitos acessíveis a quem não tem conta em banco ou está com o nome negativado. Uma pequena mostra dessa revolução se deu pelos 40 milhões de informais que se cadastraram na Caixa para receber o auxílio emergencial. Agora, uma parcela da população que estava à margem da economia formal, sem vínculo bancário, poderá enviar dinheiro, pagar suas contas cotidianas e fazer compras pela internet. Espera-se que essa movimentação fomente a oferta de crédito para essa parcela da população. O empreendedorismo também será estimulado, assim como o combate à sonegação fiscal — já que as transações poderão ser todas rastreadas pelo BC.
Não é apenas o cidadão comum que terá sua rotina alterada. Essa inovação mexerá com vários setores da economia. É um desafio para os grandes bancos, que terão quedas de até 8% nas receitas de tarifas (TED, DOC, boletos e cartões), segundo a agência americana de classificação de risco Moody’s. Também é para as gigantes do varejo, os bancos digitais e as operadoras de maquininhas. Todos estão se associando às fintechs, as startups financeiras, que estão se multiplicando e se fortalecendo. Com o Pix, estarão competindo pelos mesmos clientes que as instituições financeiras tradicionais. Os pagamentos de contas são um exemplo. Os bancos se beneficiavam de concentrar todos os pagamentos do usuário (contas de água, luz, IPVA etc.). Com o Pix, qualquer uma das 762 instituições financeiras que já se credenciaram no BC vai poder ofertar os mesmos serviços. “Ficamos muito contentes quando o BC anunciou a implantação do Pix. Já nascemos prontos para ele”, diz Ray Chalub, diretor de Conta Digital e Meios de Pagamentos do Inter, um dos grandes bancos digitais do País. Segundo o executivo, o Pix traz mais eficiência para o modelo de negócios da plataforma, que não cobra taxas para transferências via TED. “Não faz mais sentido as transferências e pagamentos ocorrerem apenas em dias úteis.”
O cruzamento de serviços de comércio e bancos será corriqueira. “Os desbancarizados vão ser inseridos no sistema financeiro, tendo acesso a serviços que os grandes bancos não tinham interesse em oferecer”, diz Marcelo Godke, professor de direito da Faap. Para ele, hoje são as grandes varejistas que suprem uma lacuna nessa área. “Dão cidadania bancária, que é a carteira digital.” As redes já vinham se antecipando à mudança. A Via Varejo, dona das marcas Casas Bahia e Pontofrio, tinha lançado sua própria conta digital, o banQi, em 2019. Ele foi desenvolvido em parceria com uma startup, que foi adquirida pela empresa este ano. Agora, está sendo adaptado para o lançamento do Pix. Essa é uma das vantagens para quem não tem conta bancária. Poderá receber pagamentos nas próprias contas digitais, atreladas a uma loja, a uma fintech ou a outra instituição credenciada. A marca que proporcionar o melhor serviço sai na frente para conquistar o consumidor. “Algumas redes farão o papel de bancos, abrindo contas digitais para seus clientes, como Magazine Luiza, Casas Bahia, Pernanbucanas e B2W”, afirma Jorge Gonçalves, vice-presidente do Instituto para Desenvolvimento do Varejo.
Com a digitalização, menos dinheiro vai circular nas lojas — 60% das compras ainda são pagas com dinheiro, diz a entidade. Menos circulação da moeda, custos menores com cartões e eliminação dos boletos podem aumentar a produtividade. “Teremos um longo aprendizado e o varejo terá a função mais educacional”, diz Gonçalves. “O grande ganhador é o comerciante, que vai ser empoderado com essa evolução”, diz Letícia Murakawa, diretora executiva da consultoria financeira internacional Capco. Mas ela aponta um problema — positivo — que será introduzido pelo sistema. Vai ser preciso uma reeducação financeira. A integração daqueles que não têm contas bancárias vai depender de disponibilidade de internet e de educação digital, porque muitos têm celular, mas não sabem como poderão usar para pagamento. “Os comerciantes, que já usam as maquininhas para aceitar o pagamento do cartão, vão perceber os benefícios desse novo modelo e devem ajudar a impulsionar. Alguns vão oferecer conta digital. Mas tudo é uma questão de amadurecimento e leva tempo “, diz Murakawa.
Porém, alguns negócios serão colocados em xeque. “Quem deve ter problemas no futuro, com a criação no PIX de pagamentos agendados e parcelados, serão os cartões de crédito”, diz Jorge Iglesias, CEO da Topaz Stefanini, divisão de serviços financeiros da consultoria brasileira Stefanini. Ele se refere aos novos serviços do Pix que devem entrar em operação apenas em 2021: os pagamentos pré-datados e parcelados, além do saque de dinheiro — com o celular na mão, o cliente poderá sacar dinheiro no caixa do supermercado, por exemplo. O diretor geral da Visa no Brasil, Fernando Teles, mostra tranquilidade e diz que hoje, mais do que nunca, representa uma companhia de tecnologia. Para ele, o Pix é um processo natural de evolução. “Vamos conviver com todos os sistemas, e nos preparamos para oferecer todo o ambiente tecnológico, com todas as camadas de segurança que ele exige.” Ele também aponta as oportunidades de inclusão. “Podemos oferecer cash back, pontos e outros tipos de recursos para fidelizar o cliente”, afirma.
Já as empresas de maquininhas podem se transformar utilizando o diferencial na ponta, pois seu equipamento dá a possibilidade de pequenos comerciantes terem acesso ao pagamento digital sem precisar investir em soluções próprias. As máquinas geram os QR Codes em ambiente seguro. Além de pagamentos, podem também oferecer outros serviços, incluindo até empréstimos. A Stone, uma das companhias que se notabilizaram na “guerra das maquininhas”, já tinha implantado o QR Code desde junho para o recebimento de compras feitas com o auxílio emergencial do governo, por meio de usuários que haviam criado uma conta digital na CEF. “O Pix será uma maneira de consolidar a relação que já temos com os clientes porque, além de ofertar Pix pela Conta Stone, vamos disponibilizar o pagamento instantâneo pelas maquininhas dos lojistas”, diz Breno Maximiano, head de Banking da empresa.
Corrida de cadastros
A tecnologia do Pix já é conhecida e utilizada em mais de 50 países. Japão, Grã-Bretanha, Suíça, África do Sul, Chile e México dispõem de serviços semelhantes. China e Índia têm o maior número de transações diárias. Especialistas apontam que o sistema desenvolvido pelo BC é robusto e seguro. Além disso, incorporou a experiência das outras nações. É o caso do pagamento offline, que deve ser introduzido no próximo ano: o cliente sem conexão no celular poderá aproveitar a rede das lojas para completar sua operação, ao mostrar o QR Code do seu aparelho. Carlos Netto, CEO da Matera, empresa de desenvolvimento de tecnologia para o mercado financeiro, também elogia a possibilidade de inclusão dos participantes indiretos, as instituições que não são certificadas pelo BC. Elas podem operar junto a outras plataformas. Algumas facilidades ainda estão em projeto. Por enquanto, o Pix tem validade apenas no Brasil. Não será possível enviar dinheiro para contas no exterior, por exemplo. O Banco Central alega que essa facilidade só deve entrar em vigor depois de 2022, quando a nova legislação cambial for aprovada. Para os aposentados e pensionistas, o recebimento dos benefícios ainda depende do INSS.
Tudo indica que o novo sistema será um sucesso, com uma grande procura desde o início para o cadastramento das chaves. Já foram inscritas 55,6 milhões. Até o último dia 15, três fintechs — Nubank, Mercado Pago e PagSeguro — lideravam a lista de maiores credenciadoras, com um volume 50% superior ao da soma dos cinco maiores bancos do País (Banco do Brasil, Itaú Unibanco, Bradesco, Santander e Caixa Econômica Federal). “Mesmo não sendo obrigatório, a quantidade de chaves registradas está surpreendendo. Até porque a mudança não é obrigatória, quem quiser poderá continuar usando o DOC ou a TED”, diz Carolina Sansão, gerente de inovação e tecnologia da Febraban. O novo sistema é uma boa notícia para um país que ainda tem um dos sistemas bancários mais concentrados do mundo.
O mau ambiente de negócios aumenta os custos e diminui a competitividade. Em desenvolvimento há mais de um ano, o Pix faz parte da estratégia de modernização do Banco Central, que levará no futuro ao open banking, o compartilhamento de dados por todas as instituições em uma plataforma aberta. Em linhas gerais, a autoridade monetária deseja deixar os agentes privados livres para desenvolver produtos e serviços. No futuro, espera-se que gigantes tecnológicas também entrem nesse mercado, como Apple e Google — o Facebook, por meio do WhatsApp Pay, já tentou estrear no Brasil em junho, logo depois da Índia, mas a operação foi suspensa pelo Banco Central e pelo Cade.
Espera-se que o sistema seja positivo para toda a economia. Mas ele vai permitir um controle maior do Estado, o que inspira cuidados, especialmente sobre o avanço das taxações. “O Pix permite ao governo um controle maior sobre o fluxo monetário. Facilita a cobrança de dívidas tributárias, pode ser usado para a nova CPMF e também para o controle da lavagem de dinheiro. Cobrar tributos vai ser mais fácil”, diz Godke. “O Pix é um dos nossos principais projetos e é muito importante, especialmente nessa crise que acelerou os pagamentos eletrônicos”, diz Roberto Campos Neto, presidente do BC. “É só o começo da mudança digital, que virá trazendo o open banking.” Ainda sem data de início, o open banking tem o potencial de baixar os spreads bancários, os juros que o consumidor paga ao fazer empréstimos — entre os maiores do mundo, ainda que a Selic tenha caído a níveis inéditos. Que o Pix seja um passo fundamental para colocar o País no rumo do futuro, pelo menos em tecnologia de transações. Para o crescimento sustentável da economia, faltam a responsabilidade fiscal e as reformas, que ainda aguardam um ambiente mais propício em Brasília.