Nos últimos cinco meses, Deltan Dallagnol, coordenador da força tarefa da Lava Jato, teve a vida virada do avesso. Depois de ser reconhecido, ao lado do ex-juiz Sergio Moro, como um dos responsáveis pelas investigações que levaram 150 pessoas poderosas para a cadeia por corrupção – entre elas o ex-presidente Lula –, o jovem procurador da República, de 39 anos, passou a ter seu trabalho questionado após a invasão de seu Telegram por um grupo de hackers
que roubaram mensagens de suas conversas com o atual ministro da Justiça e outros colegas. A divulgação dos diálogos pelo site The Intercept colocaram em dúvida algumas de suas ações. Para ele, no entanto, ficou demonstrado que não houve nada de irregular nos procedimentos: “Nenhum inocente foi condenado”.
O procurador entende ter sido “vítima de fofocas”, como ele classifica a chamada vaza jato, e que agora o pior já passou. Em razão disso, decidiu conceder uma longa entrevista exclusiva à ISTOÉ, na qual aproveitou para expressar suas apreensões quanto ao futuro da Lava Jato. O procurador entende que a operação está em xeque e que o STF está prestes a tomar uma decisão que pode provocar retrocessos no combate à corrupção: o fim da condenação após julgamento em segunda instância. “A decisão do STF sobre o tema definirá se queremos ou não voltar a ser o paraíso da impunidade de poderosos”. O procurador acredita que se o condenado puder apelar até a última instância para somente então ir preso, o Supremo estará colocando em liberdade milhares de corruptos, homicidas, traficantes e estupradores. “Somente na Lava Jato serão soltos 38 presos”. Entre eles, o ex-presidente Lula.
Provas ilícitas
Além dessa iniciativa, outras medidas no âmbito do STF ameaçam a continuidade da Lava Jato, de acordo com o procurador. A decisão do presidente do STF, Dias Toffoli, de suspender as investigações de ações baseadas em dados do Coaf, e que favoreceram o senador Flávio Bolsonaro, seria uma dessas. Para Dallagnol, a lei neste caso foi contrariada. Outra ação do STF que pode abalar a operação, em sua visão, é o julgamento do tribunal do pedido de suspeição do ex-juiz Sergio Moro por ter condenado o ex-presidente Lula no tríplex movido por pretensas “motivações políticas”, de acordo com os advogados do petista. Eles pedem a anulação da sentença. Dallagnol lamentou que o ministro Gilmar Mendes tenha admitido usar os diálogos do ex-juiz com procuradores para contribuir com a tese da anulação do julgamento. “A Constituição proíbe o uso de provas ilícitas”, criticou o procurador.
Dallagnol diz enxergar nesses movimentos uma espécie de ofensiva destinada a inviabilizar a operação, como ocorreu no passado com a Castelo de Areia e a Satiagraha, anuladas pela Justiça, “apesar das provas materiais dos crimes”. Ele não tem dúvida de que a vaza jato fez parte de processo semelhante. Apesar dos ataques sofridos, Dallagnol aposta que a Lava Jato resistirá. Somente este ano, de acordo com seu levantamento, foram executadas nove das 66 fases da operação até aqui realizadas desde 2014. Também no mesmo período firmou dezenas de acordos com criminosos para a recuperação de R$ 2 bilhões em dinheiro desviado da Petrobras. Ele reconhece, porém, estar com fôlego mais curto depois de cinco anos à frente da operação e admite: pode deixar a chefia da força tarefa nos próximos meses. Deltan estuda aceitar o cargo de procurador regional da República no Paraná: “Estou refletindo sobre o assunto”.
ENTREVISTA
O que o senhor acha do fim da condenação em segunda instância, decisão que o STF pode tomar nos próximos dias?
A decisão definirá se queremos ou não voltar a ser o paraíso da impunidade de poderosos. Já a discussão jurídica diz respeito à interpretação do princípio da presunção da inocência no Brasil. De um lado, há quem lhe dê uma conotação absoluta e, assim, exija o julgamento do último recurso possível antes da prisão. De outro lado, está quem defende que nenhum princípio constitucional é absoluto. Assim, a presunção da inocência deve ser compatibilizada com a eficiência da Justiça. No mesmo sentido, a leitura histórica do princípio é de que foi criado para garantir que a prisão ocorra após um julgamento em que o ônus da prova é da acusação.
Há ministros que defendem que o réu deve aguardar a última instância para ir preso.
Vários países que acolhem a presunção de inocência permitem que a prisão ocorra após a primeira ou segunda instância. No Brasil, são as duas primeiras instâncias as únicas que examinam fatos e provas, de modo que não faria sentido aguardar as duas subsequentes para a prisão. Outra questão relevante é a necessidade de preservar a estabilidade e segurança jurídica dos precedentes do Supremo – há apenas três anos a Corte autorizou a prisão em segunda instância.