A revista científica “The Lancet” publicou, nesta quinta-feira (4), uma nota de retratação dos autores do estudo com cloroquina e hidroxicloroquina para Covid–19 publicado por ela própria no dia 22 de maio. Os cientistas afirmaram não poder mais garantir a veracidade dos dados usados para fundamentar a pesquisa, que havia constatado risco no uso das substâncias contra o novo coronavírus.
Hidroxicloroquina — Foto: JN
A pesquisa, que analisou dados médicos de 96 mil pessoas, motivou a OMS a suspender os testes com hidroxicloroquina nos ensaios clínicos Solidariedade, iniciativa internacional coordenada pela organização. Na quarta (3), depois da publicação de uma “manifestação de preocupação” sobre o estudo pela ”The Lancet”, a entidade decidiu retomar os testescom a substância.
A retratação do estudo é o passo seguinte à manifestação de preocupação, que faz com que ele não possa ser citado, no futuro, em outras pesquisas científicas. (Veja íntegra da nota de retratação ao final desta reportagem).
Além de comunicar a retratação dos autores, a revista afirmou que a pesquisa será atualizada e terá a informação sobre a retratação “em breve”.
Veja íntegra da nota da ‘The Lancet’:
“Hoje, três dos autores do artigo “Hydroxychloroquine or chloroquine with or without a macrolide for treatment of COVID-19: a multinational registry analysis” pediram a retirada de seu estudo. Eles não conseguiram completar uma auditoria independente dos dados que sustentam sua análise. Como resultado, eles concluíram que não podem mais “garantir a veracidade das fontes de dados primárias”.
A “The Lancet” leva a sério as questões referentes à integridade científica e há muitas questões pendentes sobre a empresa Surgisphere e os dados que supostamente foram incluídos neste estudo. Seguindo as diretrizes do Comitê de Ética em Publicações (COPE, em inglês) e do Comitê Internacional de Editores de Revistas Médicas (ICMJE, em inglês), análises institucionais das colaborações de pesquisa da Surgisphere se fazem urgentes e necessárias.
A nota de retratação foi publicado hoje, 4 de junho de 2020. O artigo será atualizado e vai conter essa informação em breve.”
Os autores do estudo não fizeram ensaios clínicos: eles analisaram os dados da base da empresa “Surgisphere”, coletados de 671 hospitais em 6 continentes, e concluíram que a cloroquina e a hidroxicloroquina não tinham benefícios no tratamento da Covid-19. Além disso, também constataram que as substâncias traziam, supostamente, maior risco de arritmia cardíaca aos pacientes.
Ambos os medicamentos são usados para tratar alguns tipos de malária e de doenças autoimunes, como o lúpus.
Depois da decisão da OMS de suspender o uso da hidroxicloroquina em ensaios internacionais de Covid-19, o Ministério da Saúde brasileiro manteve a recomendaçãodela e da cloroquina para a doença.
Ao comunicar a decisão, a secretária de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde, Mayra Pinheiro, afirmou que o estudo não tinha uma metodologia “aceitável para servir de referência”.
“O estudo [da Lancet] não é um ensaio clínico, é apenas um banco de dados coletado de vários países. Não entra em um estudo metodologicamente aceitável para servir de referência para outros países, muito menos para o Brasil”, declarou Pinheiro.
‘Não invalida’ resultados anteriores, afirma especialista
Microbiologista Natalia Pasternak e neurocientista Miguel Nicolelis debatem cloroquina
Para a microbiologista Natália Pasternak, presidente do Instituto Questão de Ciência, os problemas encontrados no estudo da “The Lancet” não invalidam resultados anteriores, que já apontavam que a cloroquina e a hidroxicloroquina não têm benefício no tratamento da Covid-19.
“Isso não invalida os resultados anteriores que foram bem conduzidos, que foram publicados nas outras revistas, e todos indicam para o não funcionamento da hidroxicloroquina, com a azitromicina ou sem”, destaca Pasternak.
“As conclusões que a gente tem até agora não foram alteradas porque o paper da Lancet tem problemas”, afirma a cientista.
Para a microbiologista, a reflexão necessária é sobre a qualidade do conhecimento científico que está sendo gerado durante a pandemia. Pasternak lembra que a revisão de uma pesquisa por outros cientistas (a chamada “revisão por pares”, ou “peer review”, em inglês, que é necessária para um estudo ser publicado) leva tempo.
“A revisão pelos pares não foi desenhada para funcionar em ‘fast-track’ [de forma acelerada]. É uma revisão que tem que ser cuidadosa, e, por isso, ela demora”, pondera.
“Eu acho que essa situação toda mostra como nós estamos despreparados para lidar com situações de emergência. A nossa primeira reação é o pânico. Desde o começo da pandemia a gente tem escutado pessoas dizerem ‘não dá tempo de fazer um ensaio clínico controlado, randomizado e com grupo placebo’. Bom, já teria dado tempo. Se tivesse sido feito desde o começo, em vez de um monte de trabalhos incompletos, a gente já teria uma resposta muito mais confiável”, avalia Pasternak.
OMS comenta decisão do Brasil de liberar uso da cloroquina para casos leves
Veja íntegra da nota de retratação dos autores:
“Hidroxicloroquina ou cloroquina com ou sem um macrólido para o tratamento de COVID-19: uma análise de registro multinacional
Depois da publicação do nosso artigo na “Lancet”, várias preocupações foram levantadas a respeito da veracidade dos dados e das análises conduzidas pela Corporação Surgisphere e seu fundador e nosso coautor, Sapan Desai, na nossa publicação. Lançamos uma revisão independente por pares de terceiros da Surgisphere, com o consentimento de Sapan Desai, para avaliar a origem dos elementos do banco de dados, confirmar a completude dele e replicar as análises apresentadas no artigo.
Nossos revisores independentes nos informaram que a Surgisphere não transferiu o banco de dados completo, contratos de clientes e o relatório completo de auditoria ISO para seus servidores para análise, porque essa transferência violaria acordos com clientes e requisitos de confidencialidade. Dessa forma, nossos revisores não puderem conduzir uma revisão independente e privada e, portanto, nos notificaram de que deixariam o processo de decisão.
Nós sempre aspiramos realizar nossa pesquisa de acordo com as diretrizes mais éticas e profissionais. Nunca podemos esquecer a responsabilidade que temos enquanto pesquisadores para garantir, escrupulosamente, que nos baseamos em fontes de dados que aderem aos nossos altos padrões. Baseados neste desenrolar, nós não podemos mais garantir a veracidade das fontes dos dados primários. Por causa deste desenvolvimento infeliz, os autores pedem que o artigo seja retratado.
Nós todos entramos nessa colaboração para contribuir de boa fé e em uma época de grande necessidade durante a pandemia de Covid-19. Nós nos desculpamos profundamente a vocês, os editores, e aos leitores da revista por qualquer embaraço ou inconveniência que isto possa ter causado.
Mandeep R. Mehra, Frank Ruschitzka, Amit N Patel”
g1